Ele foi um exemplo de cidadão, de político e de espírita. Bezerra de Menezes foi perseguido no passado. Seria no presente
Era noite quando cheguei na pousada. Lugar simples e acolhedor. Embaixo funcionava uma lanchonete, que servia como uma espécie de restaurante para os hóspedes. No quarto, uma cama de casal, um ventilador de teto e um televisor, daqueles de tubo.
Foi nesse quarto que uma rã me fez achar que eu dormiria do lado de fora. Foram mais de oito horas, num ônibus pinga-pinga, da capital Fortaleza até Solonópole, município no sertão cearense.
Estava a trabalho, visitando projetos sociais a ser apoiados por um grande banco. Tomei um banho frio, porque estava muito calor, mas também não tinha água quente.
Desci para a lanchonete e me sentei na porta. Como toda cidade do interior, havia muitas crianças brincando na rua, enquanto os adultos, sentados com suas cadeiras de balanço nas calçadas, jogavam conversa fora. Sorri e me aproximei.
Tenho por hábito, em qualquer cidade que visito, conversar com os moradores, tanto para conhecer um pouco mais sobre o projeto que está querendo ser apoiado – se existe, se é conhecido, se tem boa referência -, como para escutar os contos e causos da região.
Foi aí que conheci dona Leninha, cearense de 78 anos, viúva, nove filhos, 76 netos, 14 bisnetos e espírita. Aproximei-me dela naquela noite e fui dizendo que era paulistano e filho de nordestina.
Ela quis saber o que estava fazendo por lá e como era esse trabalho de andar viajando. Engatamos uma conversa boa, que oscilava entre receitas, famílias, sonhos e religião. Eu sabia que ali era a região de Bezerra de Menezes e perguntei se tinha algum centro espírita por lá.
Dona Leninha foi me contando que era médium e que sua família foi – e continua a ser - bem próxima da família do Bezerra de Menezes. Foi ela quem me disse a origem do nome Riacho do Sangue (cidade em que nasceu Bezerra).
Recebeu esse nome por conta da luta pela posse da terra envolvendo duas famílias. As brigas e as mortes foram tão intensas que tingiram de sangue as águas do rio, nas proximidades do Alto da Batalha. Há os que acreditam ter esse nome em virtude de uma outra luta entre índios, num lugar chamado Logradouro. Hoje, Riacho do Sangue chama-se Jaguaretama.
Dona Leninha diz se comunicar com Bezerra, a quem ela chama carinhosamente de irmão: “Sempre que alguém está doente, meu filho, eu vou lá, aplico passe, faço orações e ‘curo’ por meio do médico dos pobres”.
Adolfo Bezerra de Menezes Cavalcanti nasceu em 29 de agosto de 1831 e desencarnou em 11 de abril de 1900. Além de médico – generoso, amoroso, acolhedor, o que lhe rendeu o título de “médico dos pobres”, pois atendia a todos, inclusive escravos que não podiam pagar –, foi escritor, jornalista, político, militar, filantropo e, mais tarde, um grande expoente da doutrina espírita, tornando-se presidente da Federação Espírita Brasileira na então capital, Rio de Janeiro.
As horas avançavam à noite e a conversa com Dona Leninha estava longe de terminar. Ajeitei-me na cadeira, enquanto ela tomava o suco de caju que uma das netas havia trazido e também me oferecido. Ela secou a boca com sua toalhinha, que servia para secar o suor do rosto, com o olhar de quem se lembrava de algo.
Disse que Bezerra era de família cigana e envolvida na política, por esse motivo recebeu boa educação e, quando jovem, substituía a professora em sala de aula. Quando seu pai desencarnou, mudou-se para o Rio de Janeiro para estudar Medicina. Foi lá que se tornou um político respeitável e converteu-se ao espiritismo, sendo chamado, inclusive, de “Kardec brasileiro”, tamanha era sua dedicação à doutrina.
Estava muito tarde e eu precisava jantar. Agradeci a conversa com dona Leninha e a mesma neta que trouxera o suco lhe ajudou a levantar da cadeira. Nos despedimos afetuosamente, com um grande abraço.
Naquela noite, ao voltar para o quarto da pousada, pensei muito em Bezerra e seu tríplice papel: o de médico, o de homem público (político) e o de espírita, esse último ainda muito mitificado por uma parcela de espíritas em todo Brasil.
A conversa daquela noite me fez refletir sobre os vários desafios que Bezerra enfrentou para ajudar a doutrina espírita se firmar como uma religião (ciência e filosofia) em solo brasileiro.
Integrante do Partido Liberal e opositor político do Partido Conservador, liderado por Haddock Lobo, foi atacado várias vezes – na tribuna e fora dela – por sua postura altruísta, mediadora e por sua recente conversão ao espiritismo.
Abolicionista, buscou, por meio de sua atuação, regulamentar o trabalho doméstico, concedendo o aviso prévio de 30 dias a essa categoria. Além disso, denunciou os perigos da poluição que, naquela época, afetava a população do Rio de Janeiro, promovendo providências para combatê-la.
Na contramão do que propôs Bezerra, alguns espíritas dizem que não podemos debater política no movimento, o que em si é um grande equívoco.
Cabe ao espírita debater sobre todos os problemas da sociedade e se posicionar, de maneira intransigente, a favor dos direitos humanos, da justiça e da paz. É um contrassenso associar espiritismo – que nasce progressista na França de Kardec – com modelos que excluem, estigmatizam, violam e ferem a dignidade humana.
No livro “1964: O golpe que derrubou um presidente”, dos historiadores Jorge Ferreira e Ângela de Castro Gomes, fica evidente que a “Marcha da Família Unida com Deus pela Liberdade”, ou a “Marcha da Família”, foi um protesto promovido por setores das classes média e alta pedindo a derrubada do governo João Goulart.
Neste “protesto”, não marcharam apenas católicos e evangélicos. Espíritas participaram ativamente da marcha golpista. No livro, os autores citam a participação espírita no capítulo 23, intitulado "E o golpe virou revolução...", apenas descrevendo o termo como "espírita kardecista":
"O que marcou a caminhada foram os grupos religiosos e, claro, as mulheres. Embora a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil não apoiasse oficialmente as Marchas, nada impedia que padres e bispos, por sua própria convicção pessoal, participassem do evento. Mas estiveram presentes também fiéis das igrejas protestantes, rabinos, espíritas kardecistas (sic) e umbandistas".
É interessante lembrar que durante as eleições presidenciais de 2014 muitos foram os “recados psicografados” do além, trazendo orientações bastante controversas, orientando, inclusive, a se votar num certo candidato – aquele que até hoje não reconhece sua derrota nas eleições e ajudou nesse caos que estamos vivendo.
As polarizações políticas têm se intensificado e os ânimos se acirrado nos últimos tempos, o que é bem triste. Essa postura ganhou espaço nas redes sociais, nas reuniões de amigos e de familiares e entrou – com todo ódio – nas casas espíritas.
Como uma verdadeira caça às bruxas, companheiros com visões progressistas e à esquerda estão sendo expulsos dos centros e, pior, rotulados como “obsidiados” (termo equivalente a “possuído”).
Certamente, se Bezerra vivesse nos dias de hoje, seria ofendido e caluniado por sua escolha pelos pobres, excluídos e marginalizados.
Lembro de uma frase dele: “É melhor, às vezes, lidar com quem diz não ter religião e ama o próximo, servindo-o, do que com aqueles que se dizem religiosos, não amando o próximo e explorando-o.”